Distopias e o Ensino de História
Nesta semana será lançada a 4ª temporada da série de televisão The Handmaid’s tale, uma das distopias mais lembradas quando o assunto é esse gênero literário.
Sucesso de vendas para o público jovem, as distopias podem ser um recurso didático para os professores de História. Abaixo fizemos uma seleção de livros clássicos no gênero distópico e algumas dicas de como abordá-los em sala de aula com os alunos.
Afinal, o que são as Distopias?
Em 1868 o termo “distopia” foi utilizado em oposição a “utopia” em um discurso feito ao Parlamento Britânico pelo filósofo John Stuart Mill. Na ocasião, ele apontou como a utopia frequentemente é associada a algo bom, enquanto a distopia é relacionada com algo “demasiado mau”. Anteriormente, em 1782, o termo distopia já tinha aparecido na obra do escritor inglês Baptist Noel Turner.
Atualmente, Distopia é um gênero literário ficcional que costuma tratar sobre futuros em crise ou pós-crise. Com obras atribuídas ao gênero desde o século XVII (As Viagens de Gulliver, 1726, Jonathan Swift), foi no século XX que a literatura distópica ganhou força com a criação de inúmeras obras clássicas.
Na maioria delas, encontramos cenários após desastres naturais ou nucleares em que a sociedade de determinado local se reorganizou através de governos autoritários ou teocráticos. Conforme aponta a historiadora Jill Lepore ao The New Yorker, “a utopia é o paraíso; a distopia, o paraíso perdido”.
Enquanto a Utopia revela a esperança de um mundo melhor e pacífico, as distopias revelam sociedades disciplinadas e controladas. Nas quais, é comum que “a liberdade do indivíduo foi sacrificada para alcançar uma suposta perfeição” (RODRIGUEZ, El Pais, 2017).
A partir da década de 1980, vemos um aumento da produção de livros, filmes, séries de televisão e jogos com características distópicas. E no final da década de 2000, muitas dessas produções passaram a ser direcionadas ao público juvenil.
Como utilizar Distopias no Ensino de História?
O uso de literatura nas aulas de história está cada vez mais comum. Existem várias produções acadêmicas que demonstram experiências com análises de obras literárias em sala de aula, principalmente no Ensino Médio. A historiadora Dra. Beatriz Zechlinski (2011) aponta que existem vários benefícios no uso “da narrativa ficcional para a compreensão da História”.
Para utilizar obras distópicas em suas aulas de história, nós elaboramos algumas dicas com base em estudos acadêmicos, as quais você pode encontrar abaixo:
Literatura + História = Interdisciplinaridade
Ao utilizar obras literárias em suas aulas, convide o professor ou a professora de Língua Portuguesa, Literatura ou Produção Textual da sua escola. Juntos vocês podem realizar análises mais completas do livro escolhido.
Além de que, atividades baseadas nessas obras se constituem como uma base para que o aluno realize alusões históricas em sua redação do Enem e de vestibulares.
Distopias como Documentos Históricos
A utilização de obras distópicas pode ser feita na forma de análise de documentos históricos. Para isso, sabemos que nem sempre existe a possibilidade de que os alunos realizem a leitura completa do livro. Então, selecione um capítulo ou trechos do livro que possam ser lidos pelos alunos para a análise.
No entanto, é importante lembrar que em algumas dessas obras, embora tenham classificação de leitura para o público juvenil, é comum o uso de cenas de violência. Portanto, indicamos sua utilização com turmas do Ensino Médio.
Alguns passos são importantes de seguir ao usar uma obra distópica em sala de aula:
Momento Histórico de Produção
Elabore uma pequena tabela contendo alguns dados importantes sobre a publicação que será analisada. Montamos um exemplo abaixo:
Livro | |
Autor | |
Ano de publicação | |
Local de publicação | |
Editora |
Dessa forma, com a utilização dessa tabela com as referências sobre a produção da obra, é possível que o professor apresente aos alunos como foi a elaboração da publicação.
Assim, juntamente com os alunos podemos demonstrar como as obras de ficção estão relacionadas com o contexto histórico em que foram produzidas.
Para isso, saliente com os alunos que mesmo que as temáticas abordadas sejam futurísticas, o gênero literário da Distopia e o que estava acontecendo no momento histórico de produção ou nos anos anteriores podem influenciar a produção do escritor.
Inspirações Históricas
Outra forma de análise comum para obras literárias e que também pode ser aplicada às distopias, é a contextualização do conteúdo da obra. Por mais que se tratem de ficções futuristas, as estruturas abordadas (governos, divisões hierárquicas em classes sociais, entre outras) normalmente foram inspiradas em alguns momentos históricos reais.
Então, exercite com os alunos a identificação de quais são essas estruturas e em que momentos/situações históricas eles foram inspirados.
Assim, os alunos poderão perceber como, mesmo a ficção, utiliza bases históricas para a criação de seus enredos.
Personagem revolucionário
Outra coisa bacana de analisar com os alunos é o personagem principal da obra. Na maioria das distopias, as pessoas daquela sociedade parecem aceitar a nova forma de governo, seja por coerção ou adesão. No entanto, geralmente o protagonista é uma pessoa que começou a perceber o quanto aquele governo é tirânico e começa a lutar para que haja uma modificação.
Distopias e o século XX
Embora os enredos se passem em tempos futuros, a grande maioria das obras da literatura distópica que hoje são clássicos, foram escritas e publicadas no século XX. Alguns historiadores apontam isso como resultado direto do cenário pós revoluções do século XIX.
Depois de tantos modelos revolucionários que prometiam melhoras na sociedade e da tecnologia ser demonstrada como fator de modernidade. O que se viu no século XX foi um cenário de destruição com as Guerras Mundiais e o surgimento de governos autoritários. Nos quais, a liberdade das pessoas foi restringida e o controle das massas foi feito através do uso da propaganda.
Utilize trechos do livro escolhido, que demonstrem como as distopias trazem essas características de governos tirânicos e domínio da propaganda para manter o controle sob a população.
Sugestões de distopias para análise na aula de História
Existem diversas obras literárias que se encaixam no gênero de distopia e que podem render ótimas análises em sala de aula. Como não é possível em um texto só tratar sobre todas. Fizemos a seleção de cinco obras que se encaixam nessa categoria e colocamos algumas dicas de como você pode abordá-las em sala de aula:
Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley (1932)
Imagine um mundo em que as pessoas são condicionadas biologicamente para viver em determinada casta e psicologicamente para viver em harmonia. É nesse cenário que se passa a obra “Admirável Mundo Novo”. Escrito na década de 1930, o livro demonstra uma sociedade fortemente marcada pela tecnologia, onde Ford é referido nas gírias como uma espécie de Deus que proporcionou uma sociedade onde tudo e todos tem suas funções determinadas para viver pacificamente. A individualidade é reprimida, e tudo é realizado para o “bem comum”.
Emoções e situações que assemelham humanos à animais não são bem vindas. Até mesmo uma gravidez natural é vista como símbolo de repulsa. Pessoas criadas em laboratórios são descritas na obra, isso cerca de 40 anos antes do uso da fertilização in vitro na realidade.
Para que tudo se mantivesse em harmonia numa sociedade extremamente controlada, existe a “Soma” uma espécie de substância química que cria uma sensação súbita de felicidade.
Como usar em sala de aula?
Esse livro é ótimo para demonstrar como o autor em 1932 já demonstrava o que a sociedade da época imaginava do futuro. Manipulações genéticas, controles das emoções, e invenções tecnológicas são descritas em detalhes. Nesse sentido, pode ser feito um comparativo entre as estruturas imaginadas pelo autor, com as invenções que foram criadas décadas depois.
Outra questão que pode ser abordada é a simbologia nas expressões e na contagem do tempo “antes e depois de Ford” (d.F.). Demonstrando o impacto que as mudanças industriais do Fordismo causaram no imaginário das pessoas contemporâneas ao autor.
1984, George Orwell (1949)
Após uma grande guerra, o mundo reorganiza suas fronteiras e cria novos Estados, que passam a ser governados de forma totalitária. O território denominado de Oceânia é governado por um líder chamado o “Grande Irmão” (Big Brother, no original em inglês).
Falsificações de documentos históricos, criação de propaganda pró-governo e repressão à liberdade de expressão são cenas frequentes nessa trama. A vigilância por meio das teletelas e o controle da vida dos cidadãos era constante. Desde a prática regular de exercícios físicos, até a proibição da prática sexual e da individualidade.
A obra destaca uma sociedade dominada pelo governo do Partido e do líder através do domínio de alta tecnologia, de um cenário de constante violência e do condicionamento psicológico.
Como utilizar em sala de aula?
Um dos maiores clássicos da literatura distópica, o livro 1984 foi escrito logo após a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, as influências históricas ficam nítidas ao ressaltar um governo autoritário, inspirado nos Regimes Totalitários do século XX.
Para análise em sala de aula, o professor de História pode abordar as características distópicas presentes no enredo do livro. E fazer um comparativo entre as estruturas imaginadas pelo autor com a realidade dos governos totalitários do século XX.
Outra opção é analisar trechos do livro, como a frase abaixo:
Com ela, o professor pode trabalhar como o controle é uma característica tanto das distopias quanto dos governos autoritários. E fazer os alunos refletirem sobre o uso do passado para legitimar determinados governos.
Fahrenheit 451, Ray Bradbury (1953)
Imagine uma sociedade sem livros. É esse o cenário de Fahrenheit 451, onde os bombeiros não combatem mais incêndios, e sim os iniciam. Tendo como seu alvo os livros que poucos cidadãos transgressores insistem em guardar em segredo.
Com influência direta dos acontecimentos da 2ª Guerra Mundial, neste livro o autor apresenta uma sociedade controlada por um governo totalitário, onde o prazer se encontra no consumismo e nas telas. Aliás a crítica do autor chega no momento em que as televisões estavam cada vez mais invadindo as casas e a rotina da população estadunidense.
No livro, enquanto as telas mostram imagens que despertam felicidade, os livros que descrevem o mundo real são tratados como geradores de tristeza. Afinal, questionamentos e pensamento crítico não eram bem vindos naquela sociedade.
Como utilizar em sala de aula?
Como a inspiração para o autor da obra foram as queimas de livros realizadas pelo regime Nazista na Alemanha. O professor pode utilizar trechos do livro comparados com imagens das queimas de livros pela população alemã.
Uma sugestão é utilizar a frase abaixo, extraída do livro:
E em seguida, contextualizar os motivos para que os nazistas criassem uma lista de livros e autores proibidos. Mostre a imagem abaixo, onde civis jogam livros em fogueiras.
Assim, para encerrar a atividade, questione os alunos sobre qual perigo determinados livros podem representar para um governo totalitário.
O conto da Aia, Margaret Atwood (1985)
Devido à instabilidade criada pelos desastres ecológicos e nucleares, o governo democrático que antes existia no território foi substituído por uma nova estrutura, composta por grupos extremistas que propunham a “salvação” da sociedade que diziam estar com seus valores em ruínas. Criando então a República de Gilead.
Uma das principais características de Gilead é o caráter religioso que dá sustentação à estrutura da sua sociedade. A presença de inúmeros rituais, inclusive e principalmente o referente a concepção de bebês, demonstra que o resgate aos costumes religiosos tradicionais era visto como elemento de “salvação” para aquela sociedade degradada.
Da mesma forma, além da questão autoritária e religiosa que marcam a estrutura social de Gilead, um dos principais aspectos da história é como as mulheres são tratadas naquela sociedade distópica. Nesse sentido, ela é dividida em castas, na qual as pessoas não possuem a possibilidade de mobilidade social e estão hierarquicamente separados.
O controle da população é feito através da restrição de direitos, como o fechamento das fronteiras impedindo as fugas, e o bloqueio do dinheiro das mulheres nos bancos (permitindo a administração dele apenas pelo parente homem mais próximo) seguido da demissão em massa de todas as mulheres do mercado de trabalho.
Essa medida extrema é apresentada como solução para o problema da infertilidade, já que as mulheres e sua busca pela autonomia financeira e sucesso profissional são vistos como fatores culpados pela “destruição da família”. Esse é o enredo que dá vida à obra aclamada na série “The Handmaid’s Tale”, uma distopia feminista da década de 1980.
Como utilizar em sala de aula?
Sobre essa obra temos diversas dicas que já trouxemos aqui no Nas Tramas de Clio, você pode encontrá-las nos links abaixo:
Jogos Vorazes, Suzanne Collins (2008)
A trilogia Jogos Vorazes pode ser uma distopia para jovens leitores, mas ela vai além. A autora Suzanne Collins utilizou várias inspirações históricas para criar seu enredo.
Uma das principais referências está no nome do país dividido em 12 distritos, que se originou após a destruição dos EUA: Panem. O nome da nação foi inspirado na palavra em latim “Panem et Circenses”, que designava a política romana do Pão e Circo.
Na Roma Antiga, essa prática consistia na luta entre gladiadores, animais ferozes perseguindo pessoas, e outros tipos de disputas que tinham como objetivo entreter a população, para que essa não se revoltasse contra o Imperador devido às péssimas condições de vida em tempos de crise do Império.
Além do nome, a referência aparece na própria trama, que convocava 2 adolescentes, uma menina e um menino, por distrito em Panem para competir até a morte, onde apenas um deles sairia vitorioso e, obviamente, vivo.
A disputa servia como uma espécie de castigo e controle do governo de Panem, para que os distritos continuassem obedecendo ao seu líder.
Qualquer semelhança com o Império Romano não é mera coincidência nesse livro. Além das inspirações históricas, a trama é bem construída e prende a atenção do leitor do início ao fim dos 3 livros.
Como utilizar em sala de aula?
Já que a inspiração para a obra veio através da prática romana do “Pão e Circo”, além de analisar com os alunos trechos do livro, utilize também a estratégia de comparação de imagens.
Um exemplo disso são as que selecionei abaixo. Primeiramente, aborde com os alunos a imagem da pintura sobre a prática romana. Ressalte as reações da plateia e evidencie o espetáculo e o uso da violência (Pedagogia do Medo) como um instrumento do Estado para controle da população.
No esquema abaixo, está demonstrada a arena do 75º Jogos Vorazes (descrita no livro 2 “Em Chamas”, 2009). Ressalte com os alunos o formato arredondado, semelhante às arenas romanas. As estratégias descritas na imagem podem também ser relacionadas com os elementos adicionais às lutas dos gladiadores.
Com a comparação entre as imagens é possível perceber mais claramente as inspirações históricas que levaram a autora a criar sua distopia. Envolvendo o combate de jovens até a morte em arenas televisionadas como uma lembrança para a população de obediência ao governo.
Conclusão
As obras de distopia oferecem diversas possibilidades para a análise nas aulas de História.
Os livros indicados nessas sugestões, são uma pequena amostra de como podemos utilizar esse recurso didático. Sem falar no atrativo que esse gênero literário desperta nos nossos alunos.
Curtiu nossas dicas? Se utilizar alguma em suas aulas, nos conte nos comentários.
Até a próxima.
Referências Bibliográficas:
ATWOOD, M. O Conto da Aia. Trad. de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. São Paulo: Biblioteca Azul, 2012.
CARVALHO. Leandro. Literatura no Ensino de História. Disponível em: https://educador.brasilescola.uol.com.br/estrategias-ensino/literatura-no-ensino-historia.htm
COLLINS, Suzanne. Jogos vorazes. Tradução de Alexandre D’Elia. 1. ed. São Paulo: Rocco, 2010.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução deVidal Serrano e Lino Vallandro. 22. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
MEIRELES, Alexander. Distopia. Dicionário Digital do Insólito Ficcional. 2019. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/d/distopia/
ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
RODRÍGUEZ, Alma. A nova era dourada das distopias: Séries de televisão, romances e filmes parecem ratificar que estamos em uma era de ouro das distopias. El Pais, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/06/cultura/1507305334_572081.html
ZECHLINSKI. Beatriz Polidori. História e Literatura: uma proposta interdisciplinar de ensino. XXVI SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. São Paulo, 2011. Disponível em: http://snh2011.anpuh.org/resources/anpuhpr/anais/ixencontro/comunicacao-individual/BeatrizPZechlinski.htm
2 comentários
Ademir Júnior · 29/04/2021 às 11:09
Muito bom esse material, aliás de todo o site, sou professor de História da rede pública e privada, sempre recorro a esse site para inspiração de aulas dinâmicas e ricas de conhecimento, parabéns!
Caroline Dähne · 06/05/2021 às 10:40
Olá Ademir, muito obrigada!